História da Elsa

 
As vítimas vêm ao Espaço V nas mais variadas fases do processo. Algumas vêm numa fase em que foi uma primeira vez, outras no âmbito da violência no namoro, por exemplo, uma mãe viu a situação e pediu-nos ajuda. Há outras que já são vítimas de violência doméstica há anos e anos e é o ponto final. O trabalho que fazemos depende muito da fase em que está a pessoa que nos procura e pede ajuda. A vítima é o centro da nossa intervenção, temos sempre de ir ao encontro das necessidades da vítima e caminhar a par com ela. 

Há pessoas que vêm e precisam de apoio psicológico, outras de apoio para pedir um advogado à segurança social, outras de apoio para procurar uma creche, um jardim-de-infância ou mesmo às vezes ajuda para uma transferência de escola. Quando são pessoas com mais idade também articulamos com os centros de saúde.  

Ao Espaço V não vêm só mulheres, também vêm homens, mas muitas vezes estes homens pelo seu relato não são vítimas. Nalguns casos, o homem vê-se como vítima porque acha que a mulher não cumpre bem o seu papel, isto tem muito a ver com as crenças em termos de papeis de género, do papel do homem e da mulher e nestes casos temos de desmontar esses conceitos com cuidado, é complicado.  

Damos, também, literacia jurídica às vítimas. Sou grande defensora que essa literacia jurídica devia ser dada logo nas escolas, na educação para a cidadania, porque devíamos saber como é que funciona o sistema judicial. A violência doméstica é um crime muito difícil de provar pois é um crime passado entre quatro paredes, sendo a maior parte das denúncias arquivadas por falta de prova. Normalmente as poucas pessoas que o presenciam não querem prestar declarações e mesmo quando são chamadas para testemunhar, chegam a tribunal e remetem-se ao silêncio. É um crime difícil de ser provado e nós também temos de lidar com essa parte.  

A violência doméstica é crime público 

Mas não podemos esquecer que a violência doméstica é um crime público, qualquer cidadão pode apresentar queixa (na PSP, na GNR, no Ministério Público e no Portal da Queixa Eletrónica) e deve fazê-lo. Por exemplo, no meu caso tenho primeiro de avaliar se ao apresentar queixa por aquela pessoa, vou quebrar o ciclo ou, pelo contrário, vou ainda fazer pior, porque se apresentar queixa e a vítima não quer, ela não só não vai falar como nunca mais vem ao Espaço V. A nossa opção é sempre que seja a pessoa a apresentar queixa, dizer-lhe “Podes ir ao Espaço V, vais conversar. Não é preciso apresentares queixa primeiro. Vai lá, pergunta. Vai informar-te sobre isso e depois toma essa decisão”. 

É importante realçar que, num crime público, as pessoas não podem retirar a queixa. Ela pode ser arquivada, pois a pessoa pode remeter-se ao silêncio, mas não se pode retirar. A vítima apresenta a queixa e é ouvida, na maioria das vezes, em termos de depoimento na investigação criminal. Na denúncia é confrontada com a pergunta “Deseja procedimento criminal?”. A pergunta é assustadora para as vítimas. As pessoas estão muito nervosas e, algumas, com baixa escolaridade, não percebem o que lhes estão a dizer. Grande parte acaba por dizer que não quer. Se uma pessoa diz que não deseja procedimento criminal, o processo pode ser arquivado.  

Lembro-me de uma senhora guineense que falava muito mal e não percebia aquilo que lhe diziam. Era um caso de violência grave e ela teve mesmo de sair de casa. Ela descreveu que muitas vezes foi à esquadra com a roupa ensanguentada e com a camisa rasgada, mas quando fomos ao tribunal com a vítima consultar o processo, não havia nenhuma denúncia em que constasse como vítima. O que havia sim era uma queixa do alegado agressor contra ela, ou seja, o agressor a seguir a ela ter ido à esquadra, ia lá e contava uma história completamente diferente. Como não ela não se fazia entender era a versão dele que ficava.   

Estrato social: por vezes é mais difícil a denúncia nos estratos sociais mais elevados 

As pessoas com rendimentos mais baixos acabam por pedir ajuda na ação social, junto do atendimento da Câmara Municipal, e isso ajuda a identificar alguns casos. Com as pessoas de estratos sócio económicos mais elevados, por vezes, é muito mais difícil. De uma forma geral as pessoas destes estratos não apresentam queixa contra os agressores. Há uns anos uma pessoa ligou para o Espaço V a dizer que é vítima de violência doméstica e como podia ter ajuda. Disse-lhe que podíamos agendar um atendimento. Ela disse que não podia vir cá pois o seu marido é juiz. Disse-lhe que precisávamos de conversar para a poder ajudar, mas ela desligou o telefone. Como tinha ligado de um número anónimo nunca conseguimos falar com ela.  

Para as situações em que a vítima tem de sair de casa e o risco de voltar a ser agredida é baixo, temos um apartamento de transição, partilhado com outras vítimas, que é um local provisório para que possa reorganizar-se a nível pessoal, social e familiar. A sala, cozinha e casa de banho são comuns, mas cada pessoa tem um quarto. Mas temos dificuldades, porque esta é uma solução temporária. O primeiro prazo é de seis meses podendo prolongar-se por mais três e mais três, mas agora só uma das pessoas é que ainda não ultrapassou o prazo. Atualmente não há resposta a nível de habitação, alugar um quarto custa 450€ e como é que alguém que ganha o ordenado mínimo consegue pagar? Nos direitos das vítimas diz que têm direito à habitação. A Câmara de Cascais tem uma ponderação diferente para vítimas de violência doméstica para que tenham acesso mais rápido à habitação, mas atualmente o problema de acesso à habitação é um problema nacional. Nós tentamos que a pessoa alugue, tentamos dar-lhe um apoio, mas o apoio também não é durante muito tempo e, portanto, as pessoas acham se não há aquele apoio também não as ajudaram em nada.  

Neste momento temos um quarto para um acolhimento de emergência e no orçamento participativo do 2022 a proposta de implementação de um segundo apartamento de transição foi selecionada.  

A minha experiência no Espaço V tem sido de uma enorme aprendizagem a vários níveis. A maioria das vítimas, com o apoio adequado, consegue quebrar o ciclo de violência, o que é muito gratificante. As poucas que não conseguem, não ficam iguais, sentem que existe uma saída e um serviço como o espaço V que acredita nelas e as ajuda a perspetivar um futuro livre de violência.